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A Voz da Forma

“Pode-se fotografar o que não tem corpo? Digamos que não, que não é possível. Mas é exatamente essa impossibilidade que faz que o exercício da fotografia possa ascender ao estatuto de arte.

As imagens de Clara Ramalhão são prova de como o olhar do fotógrafo não é um registo, mas uma reinvenção do mundo. Sob a aparência de uma paisagem desprovida de vida, cada imagem nos sugere a eterna vitalidade de um oásis.

As dunas de areia vermelha que Clara visitou na Namíbia são como ondas de um mar secreto: ambas recusam ter pele, ambas transgridem a sua aparente fronteira. Corpos, dunas e árvores não cabem na fotografia. Pedem uma paisagem que não é deste mundo. E sendo de outro mundo há algo nesse cenário que, desde sempre, nos habitou e nos faz sonhar.

Sob o olhar de Clara, a areia ganha uma outra verdade: ela torna-se viva, nómada, eternamente errante. Estas imagens foram feitas não apenas para a viagem. Estes quase desertos estão povoados de vozes e nós escutamos os nossos pés afundando-se na areia solta. Tudo se desenha e se redesenha com pinceladas de tinta seca, tudo se molda na dureza do Sol e do vento. E parece não ter nunca havido gota de chuva que tombasse sobre estes corpos. Árvores, pessoas e chão alimentam-se do excesso de luz e de céu.

Todo este trabalho é, assim, uma travessia de falsas fronteiras: a árvore que mente que está morta, o rosto humano que a si mesmo se ilumina, os céus sem nuvens que parecem nunca terem acolhido o voo de uma ave. Não se procure folhas tombadas naquele chão: o mundo que nos traz a Clara não é feito de tempo. Não se procure pegada na areia: nesta terra não se escrevem memórias. Não se procure explicação para os habitantes desta paisagem: eles aprenderam a ser árvores e a morrer só por mentira.

Tudo nestas imagens nos traz o mesmo recado dos desertos: tudo neles é escasso e eterno. Desta aparência de imobilidade e de vazio falou Fernando Pessoa. E ele escreveu: “Grandes são os desertos porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.” Essa morte absoluta é, como nos avisa o próprio poeta, um fingimento que não chega nunca a ser mentira. Os galhos secos que rasgam os céus de Clara persistirão como mastros da própria Vida.”

Mia Couto

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